15 agosto 2017

A Historia de Yunus Emré

Yunus Emré, em tempos muito antigos, inventou contos mais duráveis que a memória de sua própria vida. Foi também um incansável buscador da verdade. Aos vinte anos aproximadamente, ou talvez mais jovem ainda, veio-lhe ao coração uma avidez pelo conhecimento que o levou pelos caminhos do mundo. Ele partiu na esperança que essa sede de saber o conduzisse a um mestre que o iluminasse. Esse mestre foi-lhe dado encontrar depois de dez anos de errância miserável, no grande vento de uma colina, em plena estepe da Anatólia.. Chamava-se Taptuk e era cego.
     Taptuk também havia viajado muito, mas por caminhos diferentes dos de Yunus. Adolescente ainda, raspou sua cabeça e sobrancelhas e vestindo um gorro de feltro vermelho foi combater invasores mongóis. Atravessou tantas derrotas quantas efêmeras vitórias. Cavalgou com o sabre entre os dentes, perseguindo homens tão loucos quanto ele.
     Odiou, pilhou, matou, cem vezes perdeu e encontrou sua alma no furor dos combates, até que finalmente o silencio se abateu sobre sua cabeça. Numa noite de derrota, ele foi deixado como morto num campo de batalha, à beira de um riacho. Lá, uma mulher, a primeira de sua existência com exceção de algumas prostitutas de tavernas, finalmente debruçou-se sobre ele. Ela o recolheu, cuidou dele até curá-lo. Só não pode devolver-lhe a visão que lhe tinha sido tomada por um sabre inimigo. Ela então lhe ofereceu sua vida, sua mão para conduzi-lo. Desse dia em diante, guiado por sua esposa, Taptuk não sonhava outra coisa a não ser encontrar ele mesmo um caminho até a fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.
     Uma noite, nesse deserto seco onde ninguém se aventurava, com exceção de alguns pastores, ele alcançou a fonte. Lá, construiu sua casa. Outros buscadores juntaram-se a ele, de tempos em tempos, levados por não se sabe que vento da alma. Eles reconheceram nesse homem imponente e de poucas palavras o mestre que eles esperavam. Construíram suas cabanas perto da sua e em volta levantaram uma paliçada.
     Quando Yunus Emré chegou a esse lugar, o monastério de Taptuk, o cego, não era mais do que isso: algumas choupanas baixas rodeadas por um muro de pedras secas na estepe infinita. Taptuk, assim que apalpou o rosto e os ombros deste andarilho faminto de saber, prometeu-lhe a verdade.
     - Ela chegará aos poucos, disse-lhe. Por enquanto seu trabalho será varrer sete vezes por dia o pátio do monastério. Yunus obedeceu de coração. No instante mesmo em que se viu diante desse ancião de cabeça raspada, uma confiança inquebrantável apoderou-se dele. Sete vezes por dia ele varria o pátio com entusiasmo, saudando alegremente o mestre e seus discípulos, quando eles se reuniam na casa da esposa onde Taptuk, o cego, ensinava todas as manhãs. Mas ninguém respondia às suas saudações. "Está bem que os discípulos me ignorem, dizia-se, mas aquele que  tão bem me acolheu em sua casa, por que não me dirige a palavra?"
     Assim se passou um ano, depois dois e três anos, sem que ninguém falasse com ele. Então, seu coração tornou-se pesado. "Sem duvida este silencio significa alguma coisa, pensou, seguramente meu mestre quer ensinar algo para minha alma, pois é à alma que se dirige a palavra sem voz.
     "Refletiu sobre sua solidão, enxotando sete vezes por dia o pó que o vento trazia sem cessar para o pátio do monastério. Enfim, numa manhã de primavera, ao sair de sua cabana, a vassoura nos ombros, uma luz lhe veio. ”Descobri! Taptuk quer ensinar-me a paciência", se disse ele. Seu coração encheu-se de júbilo e ele voltou a varrer o pátio com um ardor renovado.
     Cinco anos se passaram. Dois outros se escoaram ainda, depois três, depois cinco novos anos, sem que sua sorte mudasse. Então Yunus desesperou-se. "Que fiz eu para merecer tão longa indiferença?” se disse ele. Talvez meu mestre tenha me esquecido. Ou talvez não seja eu para ele senão um idiota recolhido por piedade, bom apenas para varrer o pátio. Esforçou-se, no entanto, para refletir desapaixonadamente. Numa noite de tempestade, veio-lhe ao espírito que Taptuk quisesse lhe ensinar a humildade. Em meio à escuridão atormentada em que se encontrava, ele sorriu. "É isso. Ele quer me ensinar a humildade". Na manhã seguinte, quando iniciou o trabalho, seus gestos estavam mais comedidos e, porque seu coração estava em paz, ele se pôs, enquanto varria o pátio, a cantarolar. Pouca coisa. Palavras que lhe subiam aos lábios e que ele deixava ir ao vento pela única satisfação de ouvir voz humana. Entretanto, sua confiança em Taptuk pouco a pouco o deixou. Este homem, decididamente, o enganara. Ele não tivera jamais a intenção de ensinar-lhe o que havia prometido. "Perco minha vida a esperar", se disse ele.
     Cinco anos ainda, varreu o pátio, sem que ninguém o escutasse. Uma noite, cansado dessa miserável existência e convencido de que ninguém se aperceberia de sua ausência, decidiu deixar aquele lugar onde, depois de quinze anos de humilde paciência, não havia encontrado senão amargura e melancolia.
     Ele se foi pela noite, caminhando sempre em frente. Andou até o amanhecer, embriagado de liberdade sem esperança. Sentiu fome e sede mas não havia nenhuma fonte onde saciar-se, nenhum abrigo onde pudesse refazer as forças neste infinito deserto de ervas amarelecidas, pedras e vento.
"Vou morrer, se disse. Que importa? Mais vale morrer caminhando do que varrendo o pátio de um louco". Andou, por três dias inteiros. Na noite do terceiro dia, no momento em que ia deitar-se sobre um rochedo para oferecer seu corpo extenuado aos abutres, percebeu ao longe um acampamento. Surpreendeu-se. Nenhum viajante viria a essas terras. Quem poderiam ser essas pessoas? Aproximou-se. Viu homens sentados na entrada de uma grande tenda. Festejavam rindo e falando alto. Quando o viram, fizeram sinal e, gritando alegremente , convidaram-no a compartilhar sua refeição. Frutas deliciosa, assados apetitosos, bebidas de todas as cores em frascos de vidro estendiam-se  em profusão sobre um tapete de lã. Yunus acercou-se deles, bebeu, comeu, e finalmente ousou perguntar a essas pessoas por qual milagre, neste deserto hostil, eles se achavam assim providos de alimentos tão raros, como ele jamais havia experimentado.
    Uma voz conduziu-nos aqui, disseram-lhe. Com certeza é o melhor lugar do mundo. Todos os dias o vento nos traz de longe os cantos de um dervixe desconhecido. Basta escutá-los e cantá-los que logo aparecem diante de nós todas essas iguarias suculentas que você vê. seríamos loucos, se fossemos viver noutro lugar.
      Yunus extasiou-se, confessou que jamais conhecera magia igual e atreveu-se a perguntar a seus companheiros se eles poderiam ensinar-lhe tais cantos para que ele não morresse de fome pelo caminho.
     - Com prazer, responderam os homens. E se puseram a cantar. Então Yunys, com os olhos arregalados e a boca aberta, ouviu os cantos que ele mesmo inventara durante cinco anos, varrendo o pátio do monastério. Reconheceu as mesmas palavras que pronunciara com o único desejo de enganar a solidão. Músicas nascidas do seu coração, na esperança de espantar a melancolia. Eram a sua obra. No mesmo instante ele compreendeu para qual trabalho ele estava neste mundo, experimentou a pura verdade de sua alma e sofreu a pior vergonha pensando em Taptuk que o havia instruído, sem que ele percebesse, como a um filho infinitamente amado. Então abraçou e beijou os homens que o haviam acolhido e voltou ao monastério correndo e chorando. "Taptuk me perdoará por eu ter duvidado dele? Se dizia ele, bebendo o vento. Algum dia ele me perdoará?"
     Já era noite quando chegou à porta carcomida que fechava a paliçada. Bateu chamando e pedindo piedade. O rosto de esposa  de Taptuk apareceu em cima do muro.
     -Eis que está de volta, Yunus, disse ela docemente."Pobre criança! Não sei se Taptuk o aceitará de novo entre nós. Sua partida o desesperou.'"Que desgraça, disse-me ele, meu filho mais querido deixou-me. Que vale a minha vida daqui para frente ?" Vou abrir. Você vai dormir na poeira do pátio. Amanhã, quando seu mestre fizer o passeio matinal, vai bater o pé no seu corpo. Se ele disser: "Quem é este homem?", então, você deverá partir para sempre. Mas se disser: "É você, meu bom Yunus?" então saberá que pode outra vez viver em sua presença. Entre, meu filho.
     Yunus deitou-se na poeira do chão. Ao amanhecer viu aproximar-se Taptuk, o cego, com sua esposa. Fechou os olhos, sentiu um pé contra suas costas e ouviu:
     - É você, meu bom Yunus?
     Ele se levantou inebriado de luz e de felicidade, correu para sua vassoura e começou novamente a varrer o pátio.
     Assim ele fez até sua morte, sem falhar um único dia, quando se tornou semelhante ao pó mil vezes levado pelo vento, seus cantos se elevaram, invadiram os lugares onde viviam os homens e os nutriam com uma bondade tão perseverante que ainda hoje, nove cidades na Anatólia reivindicam o privilégio de ter em seu território o verdadeiro túmulo de Yunus Emré, o homem que Taptuk, o cego, iluminou.


14 abril 2015

O Rei que resolveu ser generoso

Certa vez, um rei do Irã ordenou a um dervixe: “Conte-me uma história.”O dervixe disse: “Majestade, eu lhe contarei a história de Hatim Tai, o rei árabe e o homem mais generoso de todos os tempos, pois, se pudesse ser como ele, seria, realmente, o maior rei vivo. 
“Prossiga”, disse o rei. “Mas, se sua história não me agradar, tendo lançado dúvidas quanto à minha generosidade, perderá sua cabeça”. O rei falou assim porque na Pérsia era costume que todos na corte dissessem ao monarca que ele tinha qualidades mais admiráveis do que qualquer pessoa no mundo – do passado, do presente ou do futuro.
“Continuando”, disse o dervixe à maneira dos dervixes (pois eles não ficam facilmente desconcertados), “a generosidade de Hatim Tai superava, na ação e no espírito, a de todos os outros homens.” E esta é a história que o dervixe contou:
Um outro rei árabe cobiçava as posses, as aldeias, os oásis, os camelos e os guerreiros de Hatim Tai. Esse homem declarou guerra a ele, enviando um mensageiro com a seguinte declaração de guerra: “Renda-se a mim ou, do contrário, atacarei você e suas terras, e me apossarei da sua soberania.” 
Quando essa mensagem chegou à corte de Hatim Tai, seus conselheiros imediatamente lhe sugeriram que mobilizasse os guerreiros em defesa do seu reino, afirmando: “Certamente, não há um só homem ou uma só mulher fisicamente aptos, entre seus súditos, que não sacrificariam com alegria sua vida em defesa do nosso amado rei.”
Mas Hatim, contrariando as expectativas do povo, declarou: 
“Não, em vez de cavalgarem até eles e derramarem seu sangue por mim, eu fugirei. Se me tornasse a causa do sacrifício da vida de um só homem ou de uma só mulher, estaria longe do caminho da generosidade. Se vocês se renderem pacificamente, esse rei se contentará em aceitar seus serviços e tributos, e assim não sofrerão danos materiais. Se, ao contrário, resistirem, ele terá direito, segundo as convenções de guerra, de considerar suas posses como despojos, e, se perderem a guerra, ficarão sem um centavo. “ 
Assim dizendo, Hatim pegou apenas um bastão firme e rumou para as montanhas próximas, onde encontrou uma gruta e mergulhou em contemplação.
Metade da população ficou profundamente tocada com o fato de Hatim Tai sacrificar sua posição e suas riquezas em favor deles. Mas outros, especialmente aqueles que queriam se destacar como corajosos, murmuraram: “Como vamos saber se este homem não é simplesmente um covarde?” E outros, que tinham pouca coragem, criticaram Hatim, dizendo: “De certo modo, ele salvou a si mesmo, pois nos abandonou a um destino que desconhecemos. Talvez nos tornemos escravos desse rei desconhecido, que é, afinal de contas, tirano o suficiente para declarar guerra a seus vizinhos. “
Alguns outros, sem saber no que acreditar, permaneceram em silêncio, até que pudessem ter meios para formar uma opinião.
E foi assim que o rei tirano, acompanhado por seu impressionante exército, tomou posse do reino de Hatim Tai. Ele não aumentou os impostos, não tomou para si mais do que Hatim recebia do povo em troca de ser seu protetor e administrador da justiça. No entanto algo o perturbava. Tinha ouvido boatos de que, embora tivesse se apoderado de um novo reino, ele lhe havia sido cedido por um ato de generosidade de Hatim Tai. Essas eram as palavras pronunciadas por algumas pessoas do povo.
“Não poderei ser o verdadeiro senhor dessas terras”, declarou o tirano, “enquanto não capturar Hatim Tai. Enquanto viver, haverá lealdade a ele no coração de muitas dessas pessoas. Isso significa que não são meus súditos completamente, mesmo que, aparentemente, se comportem como tal.”
Assim, publicou um edital anunciando que qualquer pessoa que trouxesse Hatim Tai à corte seria recompensada com cinco mil moedas de ouro. Hatim Tai não sabia nada sobre isso, até que um dia, sentado do lado de fora de sua gruta, ouviu uma conversa entre um lenhador e sua esposa.
O lenhador disse: “Querida esposa, estou velho e você é muito mais jovem do que eu. Temos filhos pequenos e, na ordem natural dos acontecimentos, é provável que eu morra antes de você e enquanto as crianças ainda são muito jovens. Se ao menos conseguíssemos encontrar e capturar Hatim Tai, por quem o novo rei oferece cinco mil moedas de ouro, o futuro de vocês estaria garantido.
“Você deveria se envergonhar do que diz!”, respondeu a mulher. “Seria preferível você morrer e nossos filhos passarem fome a termos nossas mãos manchadas com o sangue do homem mais generoso que já existiu e que sacrificou tudo por nós.”
“O que você diz está correto”, argumentou o velho lenhador, ”mas um homem tem que pensar nos seus próprios interesses. Afinal de contas, tenho responsabilidades. E, seja como for, a cada dia, mais e mais pessoas acreditam que Hatim Tai é um covarde. Será apenas uma questão de tempo até que tenham vasculhado cada possível esconderijo à procura dele.”
“A crença na covardia de Hatim é estimulada pelo amor ao ouro. Mais conversas desse tipo, e Hatim terá vivido em vão”, replicou a mulher.
Nesse momento Hatim se levantou e se revelou ao casal atônito: “Eu sou Hatim Tai. Levem-me ao novo rei e reclamem sua recompensa.”
O velho homem ficou envergonhado e seus olhos se encheram de lágrimas. “Não, grande Hatim”, disse , “não posso fazer isso.”
Enquanto discutiam, algumas pessoas, que estiveram à procura do rei fugitivo, agruparam-se em torno deles.
“Se não o fizer”, disse Hatim,”vou me entregar ao rei e dizer que você me escondia aqui. Nesse caso, será executado por traição.
Percebendo que se tratava de Hatim, a corja avançou, prendeu seu antigo rei e o conduziu até o tirano, seguidos pelo desolado lenhador.
Quando chegaram à corte, cada um reivindicou ter capturado Hatim pessoalmente. O antigo rei, vendo o ar indeciso do seu sucessor, pediu permissão para falar: “Saiba, ó rei, que meu testemunho deve também ser ouvido. Fui capturado por este velho lenhador, e não por aquela corja ali. Dê a ele, portanto, sua recompensa e faça comigo o que desejar...”
Nesse momento, o lenhador deu um passo à frente e contou ao rei a verdade sobre Hatim Tai ter se oferecido em sacrifício pela segurança futura da sua família. 
O novo rei ficou tão impressionado com essa história que ordenou a retirada do seu exército, restituiu o trono a Hatim Tai e voltou para seu lugar de origem.
Depois de ouvir essa história, o rei do Irã, esquecendo-se da ameaça que fizera ao dervixe, disse: “Um conto excelente, ó dervixe, do qual podemos nos beneficiar. Você, de qualquer modo, não pode tirar nenhum proveito, tendo abandonado as expectativas desta vida e nada possuindo. Mas eu, eu sou um rei. E sou rico. Os reis árabes, pessoas que vivem de lagartos cozidos, não podem se equiparar a um rei persa quando se trata de generosidade verdadeira. Uma ideia me ocorreu! Ao trabalho!”
Levando o dervixe consigo, o rei do Irã convocou seus maiores arquitetos e os reuniu num grande espaço aberto, ordenando-lhes que desenhassem e construíssem ali um imenso palácio. Ele deveria ser composto de um cofre central e quarenta janelas.
Quando ficou pronto, o rei reuniu todos os meios de transporte disponíveis para abarrotar o palácio com moedas de ouro. Após muitos meses dessa atividade, uma proclamação foi expedida:
“Viva! O Rei dos Reis, Fonte da Generosidade, ordenou que um palácio com quarenta janelas fosse construído. Todos os dias, por essas janelas, ele distribuirá pessoalmente ouro para todas as pessoas necessitadas.”
Como era de se esperar, multidões de necessitados se reuniram, e o rei entregou uma moeda de ouro para cada um, aparecendo todos os dias numa janela diferente. Então, ele notou que havia um certo dervixe que, diariamente, se apresentava diante da janela, pegava sua moeda de ouro e ia embora. No início, o rei pensou: “Talvez ele queira levar o ouro para alguém necessitado.” Depois, quando viu o homem de novo, pensou: “Talvez esteja aplicando a regra dervixe da caridade secreta e redistribuindo o ouro.” E, a cada dia, quando via o dervixe, o desculpava mentalmente; até o quadragésimo dia, quando descobriu que sua paciência tinha chegado ao fim. Segurando a mão do dervixe, o rei disparou: “Verme ingrato! Você não diz obrigado nem demonstra qualquer apreço por mim. Não sorri, não se curva, e volta dia após dia. Por quanto tempo vai proceder assim? Está economizando à custa da minha generosidade para se tornar rico? Ou está emprestando o ouro a juros? Seu comportamento está realmente muito distante do comportamento daqueles que sustentam a honorável insígnia do manto de retalhos.”
Assim que estas palavras foram pronunciadas, o dervixe atirou ao chão as quarenta moedas de ouro que havia recebido e disse ao rei: “Saiba, ó rei do Irã, que a generosidade não pode existir sem que três coisas a precedam. A primeira é dar sem o sentimento de generosidade, a segunda é a paciência, e a terceira é não ter suspeitas.”
Mas o rei nunca aprendeu. Para ele, a generosidade estava atrelada ao que as pessoas pensariam dele e a como se sentia sendo “generoso”. 
Esta história tradicional, conhecida pelos leitores principalmente por meio do clássico urdu A História dos Quatro Dervixes, ilustra sucintamente importantes ensinamentos sufis.
A imitação sem as qualidades básicas que sustentem essa imitação é inútil. A generosidade não pode ser exercitada a menos que outras virtudes também sejam desenvolvidas.
Algumas pessoas não podem aprender mesmo quando expostas a ensinamentos, representados neste conto pelo primeiro e pelo segundo dervixes.

18 março 2015

O ídolo que não respondia

Era uma vez um homem que  se entregou a adoração de um ídolo. Durante vários anos, as coisas correram bem, mas um dia ele não pode resolver os problemas. Ele rolou na poeira do chão o tempo diante do ídolo, gemendo:

- Ajude-me, ídolo! Estou prestes a morrer. Oh, tem piedade de mim!

Ela orou e orou desta forma por muito tempo. Mas ele não obteve qualquer resposta.

- Oh, ídolo! Eu tinha que ser acorrentado ao erro por todos esses anos que eu o adorava! Ajuda-me agora, nestes tempos de calamidade ou voltarei para o Todo-Poderoso e pedirei a Ele para ajudar-me.

Mas ele continuou sem qualquer resposta.

Ele deixou o templo e, antes que ele pudesse limpar a poeira, o Todo-Poderoso fez seus desejos fossem cumpridos.

No entanto, um homem sábio, que tinha visto todos esses fatos, foi surpreendido.

"Como é possível que Deus, perguntou-se a si, conceda a um adorador de ídolos vulgar, falsas e sem fé, seus pedidos?", E ele não conseguia entender até que o Todo-Poderoso enviou uma mensagem ao seu coração:

"É verdade que o estúpido homem velho passou anos adorar um ídolo. Ele pediu ajuda e sua oração foi rejeitada. Mas se eu me recusasse também, que diferença haveria entre o ídolo e eu? ".

Saadi

06 março 2015

O vendedor de contas

Era uma vez um vendedor de contas que tinha uma linda mulher chamada Kubra. Numa sexta feira, Mahbub, pois este era o seu nome, estava vendendo sua mercadoria na praça em frente ao palácio quando o sultão chegou à janela e viu Kubra ao lado de seu marido. O véu esvoaçado deixava seu rosto à mostra, e os colares de contas pendentes de seus braços.
- Por minha fé! – exclamou o sultão. – Essa criatura tem as feições mais belas que já vi. Não existe outra igual a ela em todo o meu palácio. Quero me casar com ela.
E assim dizendo mandou chamar seu grão-vizir.
- Vizir - disse ele, - traga-me a mulher do vendedor de contas. Eu a quero aqui em meu palácio, e seu marido deve morrer.
- Que possa viver eternamente, ó sultão! – disse o vizir.
- Certamente arranjaremos um modo de nos livrarmos do vendedor de contas, mas não devemos matá-lo. O povo se insurgirá contra o senhor, e Vossa Majestade poderá ter que fugir. Por isso, se Vossa Majestade quiser me ouvir, posso sugerir um plano.
- Claro, vizir. Fale logo, sem omitir nenhum detalhe – disse o sultão.
- Soberano do Mundo – entoou o vizir. – Permite que o  vendedor de contas seja intimado a fazer uma cortina larga e cumprida o suficiente para ser pendurada atrás do trono. Caso ele se recuse a fazê-lo, nós lhe diremos que se não aprontá-la em sete dias pagará com sua própria vida. Ele certamente recusará, pois como poderia um simples vendedor de contas fabricar uma cortina para o palácio do sultão? Dessa forma ele será obrigado a fugir do país, e então poderemos trazer sua esposa para sua Majestade em perfeita segurança.
- Excelente! – riu o sultão. – Ponha imediatamente o plano em andamento.
Assim, enquanto Mahbub estava anunciando:
- Contas! Contas! Comprem minhas contas de Bokhara, contas de Damasco...
O grão-vizir se aproximou e tocou de leve o vendedor de contas com sua bengala de ouro.
Enquanto Mahbub e sua esposa se ajoelhavam diante do dignatório da corte, aterrorizados pela proximidade de tal magnificência, o vizir disse:
- Venha comigo ao palácio imediatamente. O sultão incumbiu-me de designar-lhe uma tarefa que ele gostaria que você executasse.
- Eu? Executar uma tarefa para o sultão?! – exclamou Mahbub. – Mas como eu poderia fazer alguma coisa por Sua Majestade, o sultão?
- Deixe suas contas aí e siga-me – disse o dignitário da corte.
E Mahbub, entregando todas as contas para sua mulher, acompanhou o vizir.
No palácio o vizir levou o vendedor de contas até a sala do trono e mostrou-lhe a janela de treliças de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura que ficava atrás do trono.
- Sua Majestade, Fonte de Sabedoria e Manancial do Conhecimento, decretou que você deve providenciar uma cortina para essa treliça atrás do trono – disse o vizir solenemente.
- Que Allah seja meu juiz – soluçou Mahbub. – Eu não sei tecer nem fiar, sou apenas um humilde vendedor de contas.
Como vou fazer tal coisa para Sua Auspiciosa Majestade?
- você tem sete dias para fazê-lo – disse o vizir. - Se ao final desse prazo não a tiver trazido para o palácio você deverá morrer.
E ele dispensou Mahbub com um aceno de mão.
Quando Mahbub voltou para o seu ponto de venda, sua mulher lhe perguntou:
- O que é que o sultão quer que você faça?
- Ele quer que eu lhe forneça uma cortina de muitos metros de comprimento e outros tantos de largura, mas nunca serei capaz de fazê-la em sete dias – disse Mahbub. – Assim sendo, deverei fugir para salvar minha vida ou serei executado.
Não tenha medo, marido – disse Kubra. – Eu lhe direi o que fazer.
E continuou, explicando que ela na verdade era irmã de uma djin, uma mulher-gênio que morava num poço.
- Vá até o poço perto do portão em ruínas – continuou – e grite para dentro dele: ´Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles`.
 Mahbub foi tão rápido quanto suas pernas permitam em direção ao portão em ruínas e falou as profundezas do poço:
- Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles.
Tão logo as palavras saíram de sua boca os objetos mencionados na beira do poço. Ele os pegou e os levou para sua mulher. Ela se trancou num quarto, e durante toda a noite ele a ouviu fiando e tecendo. Quando o primeiro galo cantou pela manha ela saiu do quarto, exausta, e ficou o dia todo dormindo. Assim, todos os dias, durante seis dias, ela dormia, e todas as noites, ele ouvia o som da roca e do tear. No último dia, quando os galos cantavam anunciando o amanhecer, Kubra saiu do quarto com uma cortina de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura em seus braços, feita do mais lindo tecido azul-escuro, brilhante como o céu noturno, com mil estrelas. Mahbub a olhou com assombro e alegria.
- Ora mulher! – disse. – Que maravilha é essa? Essa cortina é digna das janelas de qualquer palácio. Que bênçãos recaiam sobre você, minha vida está salva.
Quando o Sol estava alto, Mahbub, vestindo suas melhores roupas, tomou o rumo do palácio e pediu para ser admitido à presença do sultão.
Ao ver o maravilhoso tecido, o vizir ficou verdadeiramente surpreso, e fez com que os servos reais pendurassem imediatamente a fabulosa cortina atrás do trono. Mahbub voltou para casa com uma bolsa cheia de ouro que o sultão lhe deu assim que viu a delicada textura daquele pano.
- E agora, o que faremos? – disse o sultão. – O vendedor de contas foi mais esperto do que nós. Não posso mais executá-lo, contudo não consigo esquecer a linda esposa desse miserável homem.
- Posso Vossa Majestade viver para sempre! – disse o vizir. – Lembrei-me de uma coisa que ele nunca poderá fazer.
Para tanto, dê-me mais uma semana e executaria meu plano.
No dia seguinte o vendedor de contas e sua mulher estavam mais uma vez mostrando suas mercadorias para os passantes quando, de novo, o grão-vizir se aproximou.
- Ó vendedor de contas, Sua Magnificente Majestade pediu-me para dize-lhe que se você não conseguir, em uma semana, uma criança de sete dias de idade capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência sua vida estará perdida.
E assim dizendo, virou-se e partiu.
Dessa vez o vendedor de contas entrou em desespero.
- Mulher, mulher – gritou quase em lágrimas. – O sultão encarregou-me de uma tarefa impossível. Como posso encontrar em uma semana uma criança de sete dias de idade que seja capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência? É uma sentença de morte, portanto esta noite devo fugir para salvar minha vida; e nunca mais verei você.
 - Ouça, marido – disse Kubra. – Lembre-se que minha irmã é uma djin. Ela não nos ajudou antes? Fique em paz, e daqui a sete dias vá mais uma vez ao poço.
- O que devo fazer? – perguntou ele.
- Vá como antes ao mesmo poço e diga: ‘ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda! Envie seu filho de sete dias de idade, pois necessitamos dele por uma noite’.
Quase não conseguindo acreditar em sua mulher, o vendedor de contas encheu-se de paciência aguardando o término da semana, e então foi até o poço. Depois de falar o que sua esposa lhe havia ensinado, ele ouviu uma voz dizendo:
- Puxe o balde.
Assim ele fez, e para seu espanto viu que dentro dele havia um bebê envolto em fraldas. Mahbub levou-o para casa e disse à sua mulher:
- Aqui está a criança. O que devo fazer agora?
- Leve-a até a câmara de audiência – disse ela. – Pois o sultão e todos os cortesãos estão lá, e hoje é o sétimo dia.
Então Kubra falou o nome de Allah no ouvido da criança, e Mahbub partiu para o palácio.
Todos os cortesãos lhe deram passagem quando lá chegou.
O sultão, sentado em seu trono, observava com grande interesse enquanto colocavam o bebê numa almofada à sua frente.
- Como? Esse bebê pode falar? Ele tem sete dias de idade? – perguntou o vizir.
- Sim, Majestade – respondeu Mahbub. – Ele contará uma história ao Sultão Imperial logo que houver silencio.
Não se ouvia um único som na ampla câmara de audiências durante todo o tempo em que o bebê se esforçava para sentar-se. Logo, ele abriu a boca como se fosse falar.
- Bobagem! – disse o sultão. – Ele é muito pequeno, não será capaz de me contar nenhuma história. Ele não pode nem mesmo chorar.
Nesse momento a criança conseguiu sentar-se ereta na almofada, e dirigiu-se ao sultão.
- Ó Auspicioso Sultão, Fonte de Conhecimento! Posso falar?
O governante estava tão espantado que conseguiu apenas inclinar a cabeça em sinal de aprovação. A criança continuou:
- Era uma vez um homem que comprou um melão num bazar com uma moeda de cobre. Ao abri-lo descobriu que dentro dele havia uma cidade, de forma que desceu até ela e começou a caminhar, tentando descobrir que tipo de lugar era aquele. Quando se dirigiu a um pátio para ver se encontrava um porteiro a quem pudesse perguntar o caminho, viu uma cena estranha. Havia galinhas cantando e galos pondo ovos. O porteiro quando apareceu lhe indicou o caminho para uma casa de chá onde ele poderia beber algo. Mas ao invés de ter que pagar pelo chá, depois de bebê-lo, foi o dono da casa de chá que lhe deu uma peça de ouro por ter tomado chá e comido um doce! Nesse momento houve um grande rebuliço na rua, e as pessoas começaram a se juntar e disseram que o rei estava chegando. Todas as pessoas dessa cidade estavam usando roupas muito bonitas, mas o rei surgiu vestido em trapos e farrapos.
- Pare, pare! Eu não posso ouvir nem mais uma palavra dessa historia sem pe nem cabeça! – gritou o sultão. – Quem já ouviu falar de uma cidade dentro de um melão, de donos de casas de chá que pagam aos seus clientes por tomarem chá, de galinhas que cantam como galos, ou de um rei que anda em farrapos enquanto seu povo veste sedas?
- Vossa Majestade – retrucou a criança. – E quem já ouviu falar de um rei se casando com a esposa de um vendedor de contas?
Ouvindo isso o sultão riu gostosamente, e nesse momento sua paixão pela mulher do vendedor de contas terminou. Ele fez um sinal para Mahbub levar a criança, e este agradeceu a Allah por sua libertação.
Em seguida a criança foi levada de volta para sua mãe, a djin, e o vendedor de contas se mudou com sua bela mulher para outra cidade.  

26 fevereiro 2015

A Jovem que Voltou da Morte

Em tempos passados, vivia uma jovem muito bela, filha de um bom homem, mulher entre as mulheres, única em seu encanto e na delicadeza de sua índole.
Quando estava em idade de casar, três jovens, cada qual, aparentemente, com grandes qualidades e promessas, pediram sua mão.
Havendo decidido que todos tinham as mesmas condições, o pai deixou a escolha para a jovem.
Mas os meses se passaram e a jovem não parecia decidir-se. Um dia, repentinamente, adoeceu e morreu em poucas horas.
Os três rapazes, unidos em sua dor, levaram seu corpo ao cemitério e a enterraram em profundo silêncio e tristeza.
O primeiro jovem fez do cemitério seu lar, passando ali suas noites, em dor e meditação, incapaz de compreender o porquê do destino que a havia levado.
O segundo jovem se lançou aos caminhos e vagou pelo mundo em busca de conhecimento, como um faquir.
O terceiro dedicou seu tempo a consolar o entristecido pai.
Um dia, o jovem que se convertera em faquir chegou a um lugar onde residia um homem famoso por suas misteriosas artes. Por ser um buscador de conhecimento, ao se apresentar à porta do sábio foi admitido à sua mesa.
Quando estavam a ponto de começar a comer, uma criança pequena desandou a chorar. Era o neto do sábio. Este levantou o menino e o arrojou ao fogo.
O faquir deu um salto e se dispôs a abandonar a casa, gritando:
- Demônios infames, eu já tive a minha parte nas penas deste mundo, mas este crime ultrapassa os registrados em toda história.
Não pense nada sobre isto - disse o sábio - pois as coisas simples parecem diferentes quando há ausência de conhecimento.
Dizendo isto, recitou uma fórmula, balançou um estranho emblema e o menino saiu caminhando do fogo, sem nenhum ferimento.
O faquir memorizou as palavras e a cena e na manhã seguinte, estava a caminho do cemitério onde havia enterrado sua amada.
Em menos tempo que se leva para contar, a donzela estava de pé, diante dele, completamente de volta à vida.
Voltou para a casa de seu pai, enquanto os jovens disputavam entre si qual deles havia merecido sua mão.
O terceiro disse:
- Estive aflito por ela e, como um esposo e genro, aqui vivi, consolando o pai e ajudando-o a sustentar-se.
_ Estive vivendo no cemitério, - disse o primeiro - mantendo contato com ela através de minhas vigílias, cuidando das necessidades de seu espírito e dando-lhe apoio.
- Ambos ignoram que fui eu quem de fato viajou pelo mundo em busca de conhecimento, e quem finalmente lhe devolveu a vida - disse o segundo.
Recorreram à própria jovem, que disse:
- Aquele que encontrou a fórmula para me devolver à vida é um homem humanitário; aquele que velou por meu pai, agiu como um filho para ele; aquele que ficou ao lado do meu túmulo, agiu como um amante. Com ele me casarei.

Extraído do livro O Sufismo no Ocidente, Ed. Dervish.

21 fevereiro 2015

A sopa de pato

Certo dia um camponês foi visitar a Nasrudin, atraído pela grande fama deste e desejoso em ver de perto o homem mais ilustre do país. Ele levou como presente um magnífico pato.
O Mullá, muito honrado, convidou o homem a jantar e pernoitar em sua casa. Comeram uma deliciosa sopa preparada com o pato. Na manhã seguinte, o camponês retornou a sua vila, feliz de haver passado algumas horas com um personagem tão importante.
Alguns dias mais tarde, os filhos deste camponês foram a cidade e em seu regresso passaram pela casa de Nasrudin.
- Somos filhos do homem que lhe presenteou um pato – se apresentaram.
Foram recebidos e servidos com sopa de pato.
Uma semana depois, dois jovens chamaram a porta do Mullá.
- Quem são vocês?
- Somos os vizinhos do homem que lhe presenteou um pato.
O Mullá começou a lamentar haver aceitado aquele pato. Sem mais delongas, fechou a cara e convidou seus hospedes para comer.
Daí a oito dias, uma família completa pediu hospitalidade ao Mullá.
- E vocês quem são?
- Somos os vizinhos dos vizinhos do homem que lhe presenteou um pato.
Então o Mullá fez que se alegrara e os convidou a comer. Em pouco tempo, apareceu com uma enorme sopeira cheia de água quente e serviu cuidadosamente os pratos de seus convidados. Ao provar o liquido, um deles exclamou:
- O que é isto, nobre senhor? Por Deus que nunca havíamos provado uma sopa tão sem graça!
Mullá Nasrudin se limitou a responder:
- Esta é a sopa da sopa da sopa de pato que com gosto ofereço a vocês, os vizinhos dos vizinhos dos vizinhos do homem que me presenteou o pato.

30 janeiro 2015

Rabia al-Adawiya

Rabia Al-Adawiya, nasceu em circunstâncias humildes, e foi vendida como escrava quando era ainda criança. Mais tarde, fixou residência em Basra onde alcançou grande fama como uma santa e pregadora e foi muito estimada por muitos dos crentes contemporâneos. A data de sua morte é estabelecida entre 752 e 801. A ela é atribuída uma grande parcela na introdução, no misticismo islâmico, do tema do amor divino. Sua tumba costuma ser apontada como estando perto de Jerusalém.


Vida de Rabia

Na noite em que Rabia nasceu, não havia nada na casa de seu pai; pois seu pai vivia em circunstâncias muito modestas. Ele não possuía nem mesmo uma gota de óleo para aplicar em seu umbigo; não havia luz, nem um pedaço de pano para embrulha-la. Ele já tinha três filhas, e Rabia era sua quarta filha; esta é a razão dela às vezes ser chamada assim.

"Vá até o vizinho e implore por uma gota de óleo, para que possamos acender a lamparina," sua mulher disse a ele.

Mas o homem tinha feito uma promessa de que ele nunca iria pedir a um mortal por nada. Então ele saiu, e apenas encostou sua mão na porta do vizinho, e retornou.

"Eles não vão abrir a porta," ele disse.

A pobre mulher chorou amargamente. Naquele estado de ansiedade, o homem colocou sua cabeça sobre seus joelhos e foi dormir. Ele sonhou que estava diante do profeta.

"Não fique triste," o Profeta disse a ele. "A criança que acabou de chegar à terra, será uma rainha entre as mulheres; ela será a intercessora de setenta mil pessoas de minha comunidade. Amanhã," o Profeta acrescentou, "vá até Isa-e Zadan, o governador de Basra. Escreva em um pedaço de papel o seguinte, 'Toda noite você envia para mim uma centena de bênçãos, e às sextas feiras à noite, quatro centenas. A noite passada foi sexta e você me esqueceu. Para reparar isto, dê a este homem quatrocentos dinares adquiridos dentro da lei.'"

O pai de Rabia, ao acordar, rompeu em lágrimas. Ele ergueu-se e escreveu o que o Profeta lhe havia dito, e enviou a mensagem ao governador.

"Dê dois mil dinares aos pobres," o governador ordenou quando viu a carta, "como um agradecimento pelo Mestre ter se lembrado de mim. Dê quatrocentos dinares para o xeique, e diga-lhe, 'Eu desejo que você venha até mim para que eu possa vê-lo. Mas não creio que seja apropriado para um homem como você vir até mim. Melhor seria se eu fosse até você e esfregasse minha barba na soleira de sua porta. No entanto, qualquer coisa que você precisar, avise-me.'"

O homem pegou o ouro e comprou tudo o que era necessário.

Quando Rabia cresceu um pouco, e sua mãe e pai já estavam mortos, a fome chegou à Basra, e suas irmãs se dispersaram. Rabia arriscou-se sozinha e foi vista por um homem perverso que a pegou e a vendou por seis dirhans. Seu comprador a colocou em um trabalho pesado.

Um dia, ela estava passando ao lado de uma estrada quando um estranho se aproximou. Ao correr, Rabia caiu e deslocou sua mão.

"Senhor Deus," ela gritou, curvando sua cabeça em direção ao solo, "Eu sou uma estrangeira, uma órfã, sem pai nem mãe, uma prisioneira abandonada que caiu em cativeiro e minha mão está quebrada. E apesar de tudo isso eu não me aflijo; tudo o que preciso é Teu contentamento, saber se Tu estás satisfeito ou não."

"Não se aflija," ela ouviu uma voz dizer. "Amanhã uma tal estação será tua que até os querubins a invejarão."

Então, Rabia voltou à casa de seu senhor. Durante o dia ela continuava jejuando e servindo a Deus e de noite ela permanecia rezando até o dia seguinte. Uma noite, seu senhor acordou e olhando através da janela de sua casa, viu Rabia ajoelhada e rezando.

"Oh Deus, Tu sabes que o desejo de meu coração está em conformidade com teu comando, e que a luz de meus olhos está em servir Tua corte. Se eu pudesse, eu não descansaria uma hora de estar a Teu serviço; mas Tu Mesmo colocaste-me sob a mão de uma outra pessoa."

Tal era sua litania. Seu senhor percebeu uma lanterna suspensa sem nenhuma corrente sobre sua cabeça, cuja luz iluminava toda a casa. Vendo isto, ele teve medo. Erguendo- se, ele voltou ao seu quarto e refletiu até a aurora. Quando o dia rompeu, ele mandou chamar Rabia, foi gentil com ela e a libertou.

"Dê-me permissão para partir," ela disse.

Ele a deixou partir, e ela saiu da casa e foi para o deserto. Do deserto ela passou a um eremitério onde serviu a Deus por um tempo. Então, ela decidiu fazer a peregrinação, e voltou sua face para o deserto. Ela amarrou sua trouxa em um asno. No coração do deserto, o asno morreu.

"Deixe-nos carregar sua bagagem," os homens que a acompanhavam disseram. "Vocês devem continuar," ela respondeu. "Eu não coloco minha confiança em vocês." Então os homens partiram, e Rabia ficou sozinha.

"Oh Deus," ela disse, erguendo a cabeça, "Tu me convidaste para Tua casa e então, no

meio do caminho Tu causas a morte de meu asno, deixando-me só no deserto."

Mal ela tinha terminado de fazer esta oração quando seu asno suspirou e ergueu-se.

Rabia colocou sua trouxa nas costas dele, e continuou seu caminho. (O narrador desta história afirma que depois, ele viu aquele burrico sendo vendido no mercado.) Ela viajou através do deserto por alguns dias, então ela parou.

"Oh Deus," ela disse, "meu coração está deprimido. Para onde estou indo? Eu, um pedaço de argila e Tua casa, uma pedra! Eu preciso de Ti aqui."

Deus disse em seu coração, "Rabia, tu tens te alimentado no sangue e na vida de dezoito mil mundos. Tu não vistes Moisés rezando por uma visão de Mim? Eu lancei umas poucas partículas de revelação sobre a montanha, e a montanha tremeu em quarenta pedaços. Esteja satisfeita aqui com Meu nome!"

Rabia nunca se casou e nem nunca teve um Xeique para guia-la e instrui-la. Ela recebeu tudo o que ela sabia diretamente de Deus sem o intermédio de um Xeique.

Rabia dizia que existem três tipos de homens. O primeiro acredita que suas mãos e as mãos de seus filhos é tudo o que é necessário para ter sucesso no único mundo que eles conhecem - o mundo material. O segundo tipo reza com suas mãos para que uma recompensa seja adquirida na próxima vida. O terceiro tipo tem suas mãos amarradas em seus punhos, atadas com o amor por servir sem pensar em nenhum retorno.

Sua vida e dizeres tornaram-se fonte de profunda inspiração e desejo por todos aqueles que foram influenciados por ela e que a seguiram, tanto em seu tempo como depois de sua morte. Isto foi devido ao seu amor, manifestando-se diretamente do Espírito e da Face apenas do Amado, sem nenhum traço do eu nele, que trouxe uma fragrância especial do profundo amor secreto para os ensinamentos mais austeros dos primeiros sufis. Ela foi a Palavra que deu vida aos corações daquele povo amado de Deus que seguiu depois dela na mesma linha de amor por Deus, da mesma forma que ela. 

Particularmente, este foi o caso de Abu Bayazid al-Bistami, Abu'l Husayn Nuri,
Husayn ibn Mansur al-Hallaj e Abu Bakr ash-Shibli, que ao redor de seu líder e mestre, Al-Junaid, foram conhecidos como a Escola de Bagdá.

Rabia se referia a um amor que é completamente íntegro, resoluto e paciente, que não se aplica a nada além da Face de Deus, que é o único e verdadeiro Amado. Ele é a oração do coração que apenas testemunha a perfeita união entre Amado e Amante. É dito que Rabia foi a primeira pessoa a ensinar sobre a necessidade pela verdade absoluta e sinceridade no compromisso do amante para com o amado, que é Deus. Ela era uma daquelas referidas como os espiões do coração, pois ela freqüentemente falava claramente contra todos os que afirmavam serem amantes de Deus, mas cujos corações não estavam puros em intenção e devoção. Este era o caso daqueles que não podiam se entregar sem questionamento e completamente ao Desejo do Amado. Ela dizia a eles, "Você se rebela contra Deus, embora pareça ama-Lo. Juro por minha fé que isto é a coisa mais estranha. Pois se seu amor fosse verdadeiro, você O teria obedecido, uma vez que o amante obedece aquele a quem ele ama." Assim, sempre que alguém lhe dizia "Ai de mim, por meus sofrimentos (meus pecados)," ela respondia, "Não minta, mas ao invés disto diga, 'Ai de mim, por minha falta de sofrimento,' pois se você estivesse sofrendo de verdade, a vida não lhe traria tanto prazer." Um de seus companheiros, Sufyan al-Thawri, perguntou-lhe, "Qual é a melhor coisa para um servo fazer quando ele anseia pela proximidade com seu Senhor? Ela disse, "Que o servo não possua nada neste mundo e no próximo, exceto a Ele."

Rabia nunca teve dúvidas sobre seu Amado estar presente ou ausente, porque ela não estava interessada apenas em obter Suas boas graças. Ela vivia por um amor que não busca por nenhuma resposta, recompensa ou reciprocidade. É relatado como, um dia, um de seus seguidores disse em sua presença, "Oh Deus! Possas Tu estar satisfeito conosco!" Rabia disse, "Você não sente vergonha diante Dele de pedir que Ele esteja satisfeito com você, quando você não está satisfeito com Ele?" Com isso ela queria dizer que primeiro devemos estar verdadeiramente satisfeitos com Deus, antes de podermos pedir-Lhe que esteja satisfeito conosco.

Então, a isto seguiu-se a pergunta, "Então, quando o servo está satisfeito com Deus?" Ela respondeu, "Quando seu prazer nas dificuldades é igual ao seu prazer na prosperidade."

Alguém perguntou a ela, "O que é o amor?" Ela respondeu, "O amor vem da Eternidade e a atravessa, e ninguém foi encontrado em setenta mil mundos que beba uma gota dele até que finalmente, ele esteja absorvido em Deus, e é disto que vieram Suas palavras: 'Ele os ama, e eles O amam.'"
Quando Rabia falava, suas palavras manifestavam perfeitamente seu amor, sua crença e fé, pois ela estava totalmente imersa em seu Senhor de tal forma que ela se tornava um Luz brilhante que atraia muitas pessoas à sua presença para beber da mesma Fonte da qual ela bebia. Ela disse, "Se eu desejo uma coisa e meu Senhor não, eu deverei ser culpada de descrença." Assim, sua fé vinha de sua total entrega ao Amado, como ela disse, "Eu voei deste mundo e de tudo o que há nele. Minha oração é pela União com Você; esta é minha meta e meu desejo." Assim, uma vez que ela atribuía toda sua doença e dificuldades ao desejo do Amado, como ela poderia opor-se a Ele tentando afastar-se delas?
Uma vez, ouviram-na dizer, "Se Você não tivesse me feito diferente (uma exceção) por causa da aflição, eu não teria aumentado o número de Seus amantes."

Era parte de sua fé que ela desse as boas vindas a um asceticismo que aceitava tudo como sendo um presente de Deus, o Amante do escravo amado. Assim, ela estimava as dificuldades da mesma forma que estimava os favores e a alegria, e isto era para ela, o compromisso fundamental. Sobre isso, ela disse, "Você me deu a vida e foi meu provedor, e Sua é a Glória." E acrescentou, "Você me concedeu muitos favores e presentes. Graças e ajuda." Desta forma, ela reconhecia seu compromisso com o Doador e Provedor de toda a Bondade.

O único objeto da vida de Rabia estava associado com seu desejo e amor apaixonado por seu Amado, que não significava meramente a destruição de seu self (nafs) mas a entrega a Deus a cada momento em uma união perfeita na qual não há Senhor nem escravo, nem Criador nem criatura, apenas Ele. Neste estado ela percebeu que ela existia Nele sem nenhuma possibilidade de separação de Sua Unicidade indivisível.

A chave para seu estado alcançado e a vida apaixonada pela Presença de seu Senhor era sua constante oração, lembrança e pedido por perdão por todas suas imperfeições, e um conhecimento de que sua união com seu Amado poderia não vir da forma como ela desejava, mas apenas da forma como Ele desejava para ela. Ela estava também bem consciente de que a lembrança e arrependimento não vinham dela mesma, mas Dele, seu Deus Amado. É dito que alguém disse a ela, "Eu cometi muitos pecados, se eu me voltar em arrependimento para Deus, Ele irá voltar sua misericórdia para mim?" Ela disse, Não, mas se Ele se voltar para você, você se voltará para Ele." 

Para Rabia, o arrependimento era um presente de Deus. Como ela disse, "Buscar o perdão com a língua é o pecado da mentira. Se eu buscar arrependimento por mim mesma, eu não terei necessidade de me arrepender de novo." Ou, como ela também disse, "Nosso pedido pelo perdão de Deus também precisa ser perdoado."

Histórias sobre Rabia

Uma noite, Rabia estava rezando no eremitério quando foi tomada por fraqueza e adormeceu. Tão profundamente ela foi absorvida, que quando um junco da moita de juncos onde ela dormia, quebrou e feriu seu olho tirando-lhe sangue, ela nem notou.

Um ladrão entrou e pegou seu chaddur. Ele então tentou partir, mas seu caminho foi barrado. Ele deixou cair o chaddur e partiu, encontrando o caminho agora livre. Ele pegou o chaddur de novo e retornou, apenas para descobrir seu caminho bloqueado. Uma vez mais ele deixou o chaddur cair. Ele repetiu isto sete vezes; então ouviu uma voz vinda do canto do eremitério,
"Homem, não se envolva com tal ato. Já fazem muitos anos que ela assumiu um compromisso Conosco. O próprio Diabo não tem coragem para atrever-se a aproximar- se dela. Como poderia um ladrão ter a coragem para atrever-se a se aproximar de seu chaddur? Vá embora, patife! Não se dê a esse tipo de trabalho. Se um amigo dormiu, o Amigo permanece acordado vigiando."

Dois notáveis da Fé vieram visitar Rabia e estavam famintos.

"É provável que ela nos dê comida," eles disseram um ao outro. "Sua comida, é garantido, vem de uma fonte legal (dentro da lei)."

Quando eles se sentaram, havia um guardanapo com dois pães diante deles. Eles ficaram satisfeitos. Nesse exato momento, um mendigo chegou, e Rabia deu a ele os dois pães. Os dois homens ficaram muito tristes, mas não disseram nada. Depois de um tempo, uma serva entrou com um punhado de pães quentes.

"Minha senhora mandou a ti estes pães," ela explicou.

Rabia contou os pães. Havia dezoito deles.


"Talvez não seja isso que ela me enviou," Rabia afirmou.
Por mais que a serva afirmasse o contrário, de nada adiantou. Então ela pegou os pães

de volta e levou-os embora. O que havia acontecido é que ela havia pego dois pães para si mesma. Ela contou isso à sua senhora, e esta repôs os dois pães e a serva retornou à
casa de Rabia com todos eles. Rabia contou-os novamente, e encontrou vinte pães. Então elas os aceitou.

"Isto é o que sua senhora me enviou," ela disse.

Ela colocou os pães diante dos homens e eles os comeram, maravilhados.
"Qual o segredo por trás disto?" eles perguntaram. "Nós queríamos seus próprios pães

mas você os deu ao mendigo. Então, você disse que os dezoito pães não lhe pertenciam. Quando eles eram vinte, você os aceitou."

"Quando vocês chegaram, eu sabia que vocês estavam com fome," Rabia explicou. "Eu disse a mim mesma, Como posso oferecer dois pães a dois notáveis? Então o mendigo chegou à porta e eu dei a ele os pães e disse para Deus Todo Poderoso, 'Oh Deus, Tu disseste que Tu devolve tudo multiplicado por dez, e eu acredito nisto firmemente. Eu dei dois pães para agradar a Ti, então Tu deves dar-me vinte em retorno por eles.' Quando chegaram dezoito pães, eu soube que tinha havido alguma apropriação indevida, ou que os pães não eram para mim."

Um dia a moça que servia Rabia estava preparando uma sopa de cebola, pois já fazia vários dias desde que elas haviam preparado alguma comida. Achando que ela precisava de algumas cebolas, ela disse.

"Eu irei pedir no vizinho."

"Já fazem quarenta anos," Rabia respondeu, "que eu fiz uma aliança com Deus Todo Poderoso, de forma que não peço nada a ninguém, exceto a Ele. Não se incomode com as cebolas."

Imediatamente, um pássaro precipitou-se para baixo, com um cordão de cebolas em seu bico e o deixou cair dentro da panela.

"Não estou certa de que isto não seja uma armadilha," Rabia comentou. Ela deixou as cebolas de lado, e comeu nada mais além de pão.

Um dia, Rabia passou pela casa de Hasan (de Basra). Hasan estava apoiado em sua janela e estava chorando; suas lágrimas caíram no vestido de Rabia. Olhando para cima, ela pensou que estava chovendo; então, percebendo que eram as lágrimas de Hasan, ela voltou-se para ele e disse-lhe,
"Senhor, este choro é sinal de languidez espiritual. Guarde suas lágrimas, de tal forma que possa surgir dentro de você uma tal oceano que, ao buscar teu coração, você o encontrará apenas na vigília do Rei Onipotente."

Essas palavras perturbaram Hasan, mas ele manteve sua paz. Então, um dia, ele viu Rabia quando ela estava perto do lago. Jogando seu tapete de oração sobre a superfície da água, ele a chamou,
"Venha Rabia! Vamos rezar dois rakas aqui!"

"Hasan," Rabia respondeu, "quando você demonstra teus bens espirituais neste mercado mundano, devem ser coisas que os outros homens sejam incapazes de demonstrar."
Então ela lançou seu tapete de orações no ar, e voou sobre ele,
"Venha aqui em cima Hasan, onde as pessoas possam nos ver!" Ela disse.
Hasan que não havia atingido esta estação, não disse nada. Rabia o consolou. "Hasan," ela disse, "o que você fez, os peixes também fazem, e o que eu fiz, os insetos 
também fazem. Os afazeres reais estão além desses truques. As pessoas devem se aplicar aos afazeres reais."

Uma vez, Rabia deu a Hasan três coisas - um pedaço de cera, uma agulha e um fio de cabelo.
"Seja como a cera," ela disse. "ilumine o mundo, e queime a você mesmo. Seja como uma agulha, sempre trabalho desnudo. Quando você tiver feito estas duas coisas, mil anos serão para você como um fio de cabelo."

"Você deseja que nos casemos?" Hasan perguntou a Rabia.
"A junção no casamento aplica-se aqueles que têm um ser," Rabia respondeu. "Aqui o ser desapareceu, pois eu me tornei vazia de um self e existo apenas através Dele. Eu pertenço completamente a Ele. Eu vivo na sombra de Seu controle. Você deve pedir minha mão para Ele, não para mim."

"Como você encontrou este segredo, Rabia?" Hasan perguntou.
"Eu perdi Nele todas as coisas 'encontradas'," Rabia respondeu. "Como você veio a conhecê-Lo?"
"Você sabe sobre o 'como'; eu sei a 'ausência do como'," Rabia disse.


Uma vez, Rabia viu um homem com uma bandagem amarrada em sua cabeça. "Por que você amarrou essa bandagem?" ela perguntou.
"Porque minha cabeça dói," o homem respondeu.
"Quantos anos você tem?" ela perguntou.

"Trinta."
"Você sentiu dor e angústia a maior parte de sua vida?" ela perguntou.
"Não."
"Por trinta anos você desfrutou de uma boa saúde," ela afirmou, "e você nunca

amarrou uma bandagem de gratidão por isto. Agora, por causa de uma noite onde você tem dor de cabeça, você amarra a bandagem da queixa!"

Um dia de primavera, Rabia entrou em sua casa.
"Senhora," sua serva disse, "venha aqui fora e veja o que o Fazedor forjou."
"Melhor seria se você entrasse," Rabia respondeu. "e visse o Fazedor. A contemplação

do Fazedor é o que me preocupa, assim eu não me importo com o que Ele faz."
Uma vez, Rabia jejuou por uma semana inteira, sem comer nem dormir. Toda noite ela se ocupava com orações. Sua fome ultrapassou todos os limites. Um visitante entrou em sua casa trazendo uma tigela de comida. Rabia a aceitou e foi acender uma lamparina. Quando ela retornou, ela viu que um gato havia comido a comida.
"Eu trarei um jarro e então, quebrarei meu jejum com água," ela disse.
Quando ela trouxe a água, a lamparina havia apagado. Ela tentou beber a água no escuro, mas o jarro escorregou de suas mãos e quebrou. Ela lamentou e suspirou tão ardentemente que temeu-se que metade da casa fosse consumida pelo fogo.
"Oh Deus," ela disse, "o que é isto que Tu estás fazendo com esta Tua serva desamparada?"
"Tome cuidado," uma voz veio a seus ouvidos, "a menos que tu desejes que Eu outorgue a ti todas as bênçãos do mundo, mas erradique de teu coração o interesse por Mim. O interesse por Mim e pelas bênçãos do mundo não podem nunca estar associados em um só coração. Rabia, tu desejas uma coisa, e Eu, outra; Meu desejo e teu desejo não podem nunca ser unidos num só coração."
"Quando ouvi esta admoestação," Rabia disse, "eu cortei meu coração para fora do mundo e reduzi meus desejos de forma que, sempre quando rezei nestes últimos trinta anos, assumi que aquela era minha última oração."

Uma vez, Rabia adoeceu gravemente. Foi-lhe perguntado qual poderia ser a causa. "Eu contemplei o Paraíso," ela respondeu, "e meu Senhor me disciplinou."

Então Hasan de Basra foi visitá-la. Ele disse:
"Eu vi um dos notáveis de Basra à porta do eremitério de Rabia oferecendo-lhe uma bolsa de ouro e chorando. Eu disse, 'Senhor, por que você está chorando?' 'Por causa desta mulher santificada,' ele respondeu. 'Pois se a bênção de sua presença desaparecer do meio do gênero humano, o gênero humano irá certamente perecer. Eu trouxe algo para que ela fosse medicada,' ele acrescentou, 'e temo que ela não aceite. Você pode interceder para que ela aceite?'"
Então, Hasan entrou e falou com Rabia. Ela olhou para ele e disse:
"Ele é o provedor daqueles que O insultam; como não seria Ele o provedor para os que O amam? Desde que O conheço, eu virei minhas costas para Suas criaturas. Não sei quando a propriedade de um homem está de acordo com a lei ou não; como posso aceita-la? Eu costurei, através da lâmpada de uma lamparina do mundo, uma blusa que rasguei. Por um tempo, meu coração me obstruiu, até que me recordei. Então, eu rasguei a blusa no lugar onde havia costurado e meu coração se expandiu. Peça ao cavalheiro para rezar para que meu coração não permaneça obstruído."

Abd al-Wahed-e Amer relatou o seguinte.
Eu fui, junto com Sofyan-e Thauri, visitar Rabia quando ela adoeceu, mas cheio de tristeza por ela, não pude lhe falar.
"Diga algo você," eu disse a Sofyan.
"Se você disser uma oração," Sofyan disse a Rabia, "sua dor irá parar."
"Você sabe quem desejou que eu sofresse? Não foi o próprio Deus?" Rabia perguntou. "Sim," Sofyan concordou.
"Como é então que, sabendo disso," Rabia continuou, "você sugere que eu peça a Ele

algo que é contrário ao Seu desejo? Não é errado opor-se ao Amigo?"
"O que você deseja, Rabia?" Sofyan perguntou.
"Sofyan, você é um homem educado. Por que você fala assim? Pela glória de Deus,"

Rabia afirmou, "por doze anos eu tenho desejado comer tâmaras frescas. Você sabe que aqui em Basra é fácil conseguir tâmaras. Mas até agora eu não comi nenhuma; pois eu sou Sua serva, e o que tem a ver uma serva com desejos? Se eu quiser, e meu Senhor não, isto será infidelidade. Você deve desejar apenas o que Ele deseja, para ser um servo real de Deus. Se Ele mesmo oferecer, então será diferente."
Sofyan reduziu-se ao silêncio. Então ele disse,
"Uma vez que não se pode falar sobre sua situação, diga algo você sobre a minha." "Você é um bom homem, mas você ama o mundo,' Rabia replicou. "Você adora 
recitar as Tradições."
Ela disse isso implicando que ele estava em uma posição elevada.
"Senhor Deus," gritou Sofyan, profundamente alterado, "esteja satisfeito comigo!" "Você não tem vergonha," irrompeu Rabia, "em buscar a satisfação Daquele com 
quem você mesmo não está satisfeito?"

Malik Dinar conta a seguinte história:
Eu fui visitar Rabia e a vi com um jarro quebrado com o qual ela bebia e fazia suas abluções rituais, uma esteira velha de junco e um tijolo que ocasionalmente ela usava como travesseiro. Eu fiquei consternado.
"Eu tenho amigos ricos," eu disse a ela. "Se você quiser, conseguirei algo com eles para você."
"Malik, você cometeu um erro sério," ela respondeu. "O meu Provedor e o deles não é o mesmo?"
"Sim," eu respondi.
"E o Provedor dos pobres tem esquecido os pobres por causa da pobreza deles? E tem Ele se lembrado dos ricos por causa da riqueza deles?" ela perguntou.
"Não," eu respondi.
"Então," ela continuou, "uma vez que Ele conhece meu estado, como devo lembrar- Lhe? Este é o desejo Dele, e eu também desejo o que Ele deseja."
Um dia Hasan de Basra, Malik Dinar e Saqhiq Balkhi foram visitar Rabia que estava acamada.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que suporta com coragem o castigo de seu Senhor," começou Hasan.
"Estas palavras cheiram a egoísmo," Rabia comentou.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que agradece pelo castigo de seu Senhor," Shaqhiq disse.
"Nós precisamos de algo melhor que isso," Rabia observou.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que se delicia com o castigo de seu Senhor," afirmou Malik Dinar.
"Nós precisamos de algo melhor que isso," Rabia repetiu.
"Então, diga você," eles pediram.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que esquece de seu castigo na contemplação

de seu Senhor," Rabia disse.

Um importante estudioso de Basra visitou Rabia quando ela estava acamada. Sentado perto de seu travesseiro, ele insultou o mundo.
"Você ama o mundo com todo seu coração," Rabia comentou. "Se você não amasse o mundo, você não o mencionaria tanto. É sempre o comprador que deprecia as mercadorias. Se você não tivesse nada a ver com o mundo, você não o mencionaria, seja de forma positiva ou negativa. Do jeito que as coisas são para você, você permanece mencionando-o porque, como o provérbio diz, aquele que ama algo o menciona freqüentemente."

É dito que Rabia foi vista uma vez, carregando uma tocha de fogo em uma mão e um jarro com água em outra, e que ela corria muito rápido. Quando lhe perguntaram o que ela estava fazendo e onde estava indo, ela disse, "Estou indo acender o fogo no Jardim e jogar a água sobre ele, de tal forma que ambos estes véus desapareçam dos buscadores, e que seus propósitos possam ser corretos, e que os escravos de Deus possam vê-Lo, sem nenhum objeto de esperança ou movimento nascido do medo. O que aconteceria se a Esperança pelo Jardim do Paraíso e o medo pelo Fogo do Inferno não existissem? Ninguém iria adorar seu Senhor, nem obedece-lo. Mas Ele é digno da adoração sem qualquer motivo ou necessidade imediatos."

Existe uma história relacionada a Rabia onde ela uma vez disse, "Eu rezei para Deus uma noite com as orações do amanhecer, então eu dormi e vi uma árvore verde e brilhante, indescritível em beleza e tamanho, e nela havia três tipos de frutas, desconhecidas para mim, como seios de virgens, brancas, vermelhas e amarelas, e elas brilhavam como esferas e sóis nos espaços verdes da árvore. Eu as admirei e disse, 'O que é isso?' Então, alguém respondeu, 'Isto é para você, por suas orações antes da hora.' Então eu comecei a caminhar em volta da árvore e vi que, sob ela havia dezoito frutas caídas no chão, da cor do ouro, e eu disse, 'Se estas frutas estivessem com as outras na árvore, seria melhor.' Aquela voz me disse, 'Elas estariam lá se você, quando ofereceu suas preces, não tivesse se perguntado "estará o pão fermentando ou não?" Assim,
aquelas frutas caíram. Este é um aviso para aqueles que compreendem, e uma exortação para aqueles que temem a Deus e O adoram.'"

Uma vez Rabia estava fazendo a peregrinação e quando ela alcançou o Arafat ela ouviu uma voz que lhe dizia, "Oh tu que me buscas, qual requisição tu fazes a Mim? Se é a Mim Mesmo que você deseja, então eu irei mostrar um flash de Minha Glória, mas nisto, você será absorvida e derreterá." Então ela disse, "Oh Deus da Glória. Rabia não tem meios de atingir este degrau, mas eu desejo uma partícula da Pobreza." A voz disse, "Oh Rabia. A Pobreza é a seca e a fome de Nossa Ira que temos colocado no caminho dos homens. Quando nada além de um fio de cabelo permanece entre eles e a união Conosco, tudo é mudado e a união se torna separação. Quanto a você, você ainda tem setenta véus de existência, e até que você venha para fora destes véus, você não se beneficiará sequer em falar daquela Pobreza."

Orações de Rabia

Oh Deus, o que quer que Tu tenhas designado para mim das coisas mundanas, dê-as para Teus inimigos; e o que quer que Tu tenhas designado para mim no mundo do porvir, dê-as para Teus amigos; pois para mim, Tu és o bastante.

Oh Deus, se eu rezar a Ti por medo do inferno, me queime no inferno, e se eu rezar a Ti esperando pelo paraíso, me exclua do paraíso; mas se eu rezar a Ti apenas por Ti, não relute em me conceder tua beleza eterna.

Oh Deus, minha única ocupação e todo o meu desejo neste mundo, entre todas as coisas mundanas, é me lembrar de Ti, e no mundo do porvir, entre todas as coisas deste mundo, é encontrar a Ti. Isto é o que tem relação comigo; agora, Tu, facas o que Tu desejares.

Minha paz está na solidão, mas meu Amado está sempre comigo. Onde quer que eu contemple Sua Beleza, este ponto é meu nicho de oração (mihrab), em sua direção está minha qibla. Oh Tu, que cura as almas, o coração alimenta-se no desejo por Ti e a luta em busca da união contigo curou minha alma. Tu és minha alegria e vida eternas. Tu és a fonte de minha vida; de Ti vem o êxtase. Eu me separei de todos os seres criados, pois minha esperança está na união contigo; pois esta é a meta de minha busca.

Eu amo a Ti com dois amores - um amor egoísta
E um amor do qual Tu és digno.
Em relação ao amor egoísta, ele é aquilo que eu penso de Ti,
Em exclusão a todo o resto.
Em relação ao amor do qual Tu és digno,
Ah! Eu não mais vejo criatura alguma, apenas a Ti!
Não existe nenhum louvor para mim em nenhum destes dois amores, Mas o louvor em ambos é para Ti.


Oh Deus, a noite passou e o dia amanheceu. Como eu desejo saber se Você aceitou minhas preces ou se as rejeitou! Portanto, me consola, pois cabe a Ti consolar este meu estado. Você me deu a vida e cuidou de mim, e Tua é a Glória. Se Você quiser me afastar de Sua Porta ainda assim eu não irei abandona-la por causa do amor que eu mantenho em meu coração por Você.


Fonte: Faradudin Attar. Memorial of the saints.